In Memoriam
Tendência

David Shields – Groove Inesquecível

Em uma entrevista nunca antes publicada, o baixista David Shields — falecido em 2019 — nos contou um pouco dos bastidores da gravação de “Got to Be Real”, um dos maiores clássicos do funk na era disco

Nos últimos anos, a quantidade de vídeos de jovens baixistas executando sucessos de disco music e funk em mídias sociais como TikTok e Instagram é impressionante. Ainda que alguns críticos reflitam sobre a questão ética de se alterar, de alguma forma, uma obra de arte já criada e eternizada em uma gravação, o fenômeno existe — e virou uma febre mundial. Dentre os clássicos, “Got to Be Real”, lançado em 1979, parece ser um dos mais populares entre os baixistas.

Essa canção foi escrita para a cantora Cheryl Lynn pelo maestro, arranjador e produtor David Foster e pelo tecladista do Toto, David Paich. A jovem cantora, com apenas 22 anos na época, ganhou um contrato com uma grande gravadora ao vencer o Gong Show, um escrachado show de calouros que tinha grande audiência na TV americana no final dos anos 1970. Apesar de ser um clássico da “era disco”, a canção é, na verdade, um funk — com todas as características que definem o estilo.

O baixo dessa gravação ficou a cargo de David Shields. Nascido e criado em Detroit, sua juventude foi, segundo ele próprio, regada pela influência que a Motown exercia sobre todos os músicos da cidade naquele período.

Começou a tocar cedo, aos 8 anos de idade, e rapidamente se destacou, construindo uma carreira sólida como músico de estúdio até se tornar um dos mais requisitados da concorrida cena de Los Angeles durante os anos 1970. Seu currículo é impressionante, com colaborações ao lado de artistas como Thelma Houston, Bobby Womack, Jim Capaldi, entre outros.

Para os fãs de funk, vale lembrar que em 1979, Shields também participou com seu baixo de outro groove matador, “Get Up”, do cantor Vernon Burch. Essa gravação seria sampleada uma década depois pelo Deee-Lite no sucesso “Groove Is in the Heart”.

Durante alguns anos, mantive contato com ele pela internet. Debilitado devido a problemas de saúde, ele se mantinha relativamente afastado da música, residindo no Havaí.

Nessas breves trocas de mensagens, tive a oportunidade de lhe falar o quão importante ele — e outros músicos daquela época — foram para a minha geração. Atencioso, respondeu que era uma honra saber dessa influência.

Às vésperas de um workshop que eu faria, abordando o funk na era disco, resolvi procurá-lo com o intuito de perguntar sobre sua carreira e curiosidades da época.

Sabendo de seu estado de saúde, procurei ser o mais breve possível nas questões.

Meses depois, em setembro de 2019, fiquei sabendo, com pesar, de seu falecimento.

Segue um pouco da conversa:

Cover Baixo: Quarenta anos após seu lançamento, “Got to Be Real” ainda causa grande impacto nas pistas de dança do mundo todo — e sua contribuição com aquela linha de baixo foi decisiva para isso.

David Shields: É uma ótima sensação saber que minha performance de baixo durou tanto tempo, assim como é uma honra ter participado desse disco.

C.B.: Que instrumento você usou nesta gravação?

D.S.: Naquela época, eu usava um Fender Jazz Bass pré-CBS.

C.B.: Cordas?

D.S.: Acho que eram Rotosound Roundwound.

C.B.: A ideia daquela fantástica linha de baixo foi sua ou já chegou escrita?

D.S.: Ainda que tenha recebido algumas orientações do produtor do disco (o tecladista da banda Toto, David Paich), a criação da linha foi quase toda baseada em licks meus.

C.B.: Em algumas gravações de funk ou disco, as linhas de baixo são tão ou mais importantes que as melodias ou letras…

D.S.: Sim, concordo com você — mas ajuda demais se você tiver uma boa canção para começar.

C.B.: Fico imaginando como mensurar, em valor monetário, a contribuição dos músicos envolvidos nessas gravações. Existem histórias de instrumentistas da era de ouro da Disco Music que falam que um músico de estúdio na época ganhava cerca de US$175 por música…

D.S.: Bem, isso dependia muito da sua habilidade para negociar e aceitar um valor. Como eu era membro da AFM (American Federation of Musicians), a tabela poderia ser simples, dupla ou tripla.

C.B.: Sua linha de baixo em “Get Up”, do cantor Vernon Burch, é uma aula de slap.

D.S.: Obrigado — influência de Larry Graham, com um pouquinho da minha maneira de tocar.

C.B.: Gostaria de dizer que é uma grande honra para mim, um apaixonado por R&B, soul, funk e disco, poder trocar informações com mestres como você.

D.S.: Sinto-me honrado por você me incluir no seu projeto. Sempre que tiver perguntas, ficarei feliz em responder o melhor que puder.

Fernando Savaglia

Em mais de 40 anos de carreira trabalha ao lado de artistas como o norte americano Jimmy “Bo” Horne (em suas diversas turnês pelo Brasil desde 2010). Fez parte da banda Mo’ Jama que teve o primeiro álbum, Pulsação (indicado ao Grammy como Artista Revelação), lançado em 2002. Foi colunista das revistas Cover Baixo (2002 a 2010) e Bass Player Brasil (2012 a 2017). É autor do método Soul, Funk & Disco lançado em 2005 pela coleção Toque de Mestre.
Botão Voltar ao topo