In Memoriam
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Arthur Maia – Memórias de Um Baixo Irmão

Em uma conversa repleta de memórias e reverência, o baixista Jorge Pescara relembra os momentos marcantes ao lado do saudoso Arthur Maia, destacando a conexão musical e a amizade que transcendeu os palcos

Por Jorge Pescara

Arthur Maia foi um dos mais influentes baixistas brasileiros. Com sua linguagem única e uma abordagem imponente no instrumento, reuniu em sua trajetória as influências do tio Luizão Maia, de Marcus Miller e Jaco Pastorius. Influenciou e formou, direta ou indiretamente, diversos baixistas — fosse por meio de aulas, workshops, ensinamentos ou mesmo em simples bate-papos após os shows. Sua técnica, baseada fortemente no pizzicato com os dedos indicador e médio, somada a um slap pulsante e groovado, impulsionou uma geração de fãs mundo afora.

Mas prefiro deixar o impressionante currículo dele de lado e falar de algo mais pessoal: meus anos de amizade e formação com o mestre.

Vi Arthur tocar pela primeira vez em 1987, primeiro num show de Milton Nascimento e depois no Free Jazz Festival com o Cama de Gato. Esse grupo causou grande impacto nos estudantes de música da época, que buscavam no jazz brasileiro uma fonte segura para crescer e se inspirar.

Naquele momento, eu tinha recém-descoberto o baixo elétrico e iniciava meus estudos na FASCS (Fundação das Artes de São Caetano do Sul). Posteriormente tive aulas de fretless com Cláudio Bertrami e estudei acústico na Escola Municipal de Música. Porém, após a universidade, decidi que precisava aprender com aquele cara do Fender Jazz Bass preto.

O final dos anos 1980 e início dos 90 foi um período mágico para a música instrumental brasileira. Grupos de jazz fusion surgiam por toda parte em São Paulo e no ABC — sou de Santo André —, como Zona Sul, Zonazul, TNT, Celso Pixinga Trio, Bocato, Pau Brasil e Kali. Nessa época, assisti a vários shows do Cama de Gato e, em 1991, enquanto ajudava a organizar um Festival Internacional de Contrabaixo pela Associação Brasileira de Contrabaixistas, criada na UNESP, tive a chance de me aproximar do Arthur Maia.

Mostrei a ele uma transcrição completa que havia feito da música “Nosso Samba”, de seu primeiro disco Maia (Som da Gente). Arthur ficou entusiasmado e me disse para procurá-lo no Rio. Meses depois, estava na casa dele, conhecendo sua esposa Cláudia e os filhos Vitor e Julia. Após muitas conversas musicais e risadas, me convidou para voltar de novo. E assim começou nossa amizade.

E justamente nessa época, tive a oportunidade de conhecer o lado humano de Arthur Maia.

Ele era o tipo de pessoa que abraçava todos. Sempre disposto a ajudar quem estivesse próximo. Dizia algo que me marcou profundamente, “uma mão leva a outra”. Ao contrário da expressão “uma mão lava a outra”, que pode soar interesseira ou indiferente, Arthur propunha o contrário. “Minha mão se estende até a sua para ajudar — e vice-versa.” Isso não era só discurso. Ele fazia, agia, era da sua índole. Era também engraçadíssimo, com um timing incrível para piadas, mas sua melhor faceta era mesmo sua gentileza.

Comecei a preparar várias transcrições de suas músicas e, durante uma das visitas, executei para ele escutar. Ao final da terceira ou quarta, vi lágrimas em seu rosto. Quando comentei que pensava em lançar esse material em forma de livro, ele respondeu: “Pesca (como me chamava), eu nem mereço tanta homenagem assim.” E então, com um sorriso, ofereceu-me aulas gratuitamente. “Faremos por essa amizade que está se formando”, disse. Que privilégio o meu, conhecer seu ídolo, que vira amigo e em seguida professor.

As aulas não seguiam um modelo tradicional. Nada de cronogramas rígidos. O foco era sempre a Música — com M maiúsculo. Tocar escalas e arpejos com musicalidade, buscando formas melódicas, rítmicas e modais de estudá-las. Arthur dizia, “estudar escalas rigidamente não é nada musical. Conheça-as, domine a digitação, mas depois estude com variações rítmicas, saltos, interligações modais” e arrematava, “tem que ser divertido.” Bingo. Isso mudou meu foco.

Durante os anos em que fui seu aluno, veio outra surpresa: fui convidado para integrar sua banda, a Arthur Maia Project Band, como segundo baixista. A ideia era manter os grooves enquanto ele fazia melodias, solos e dobras. Fizemos diversos shows pelo Brasil. Para mim, aquilo foi uma verdadeira universidade. Um desses shows foi o lançamento do álbum Música Sonora em dezembro de 1995 no extinto Canecão no Rio. A banda incluía Jorginho Gomes (bateria), Glauton Campello (teclados), Cláudio Zoli (guitarra), Marcelinho Martins (sax), Chico Oliveira (trompete), além de participações especiais como Gilberto Gil, Lulu Santos e o Cama de Gato. A plateia estava cheia de monstros entre eles, Nico Assumpção, Marcelo Mariano, Yuri Popoff. E eu, ali, no palco, pensando que tempos atrás queria apenas conhecê-lo.

Nesse show, Arthur começou a tocar uma música com o fretless e percebeu que o instrumento estava totalmente desafinado. Chegou perto de mim e disse, “segura aí que vou afinar”. Era típico dele. Entrou só na metade da música, fez um solo arrasador e depois me disse: “Pesca, é sempre assim. Aconteça o que acontecer, sorria.” (risos). Tudo isso foi eternizado no especial Na Corte do Rei Arthur, da extinta TVE.

Ele gostava de me manter no Rio. As vezes, sumia com minha carteira, meus documentos, dinheiro, só para eu não voltar para São Paulo. A esposa dele se divertia com isso. Acabei me afeiçoando a família toda.

Estive ao seu lado em gravações com Djavan (álbum Malásia), no álbum Amendoim Torrado do Cama de Gato, na produção de Música Sonora, e até quando Gilberto Gil o convidou para integrar sua banda. Arthur urrava de alegria, ligou até pro John Patitucci para contar. Hilário!

Os músicos da época não sabiam lidar com patrocínios e percebi que ele merecia apoio profissional. Como eu prestava assessoria musical para algumas importadoras, indiquei Arthur para ser endorsee da Warwick, cordas Ernie Ball, Zoom Effects e dos amplificadores Gallien-Krueger. Fizemos diversas apresentações em duo, trio, quarteto. Muitas na ExpoMusic dos anos 90 e início dos 2000. Tocamos com Arismar do Espírito Santo, Celso Pixinga, Pedro Ivo, André Rodrigues. Uma delas me marcou demais quando tocamos “Domingo no Parque” com o próprio Gil cantando. Êxtase puro.

O tempo passou. O livro Arthur Maia Transcriptions foi lançado. Os ensinamentos continuaram. Em 1997, me mudei para o Rio e o convidei para tocar num show da banda LinhAmarela, que produzi e também integrava. Ele colocou o público pra dançar. Indicou-me como sub em trabalhos como o trio do Celso Fonseca (no Nescafé Festival, abrindo para Stanley Clarke), uma temporada com o Ney Matogrosso (Olhos de Farol), e até uma gravação do Zé Ramalho com Robertinho do Recife, onde Arthur não apareceu e me mandou, sem avisar ninguém. Ele era assim.

São muitas as histórias. Mas os ensinamentos ficaram para sempre. A forma como ele trabalhava as escalas, os grooves, a musicalidade. Tudo isso mudou minha forma de ver o instrumento.

Possuo muito material que não saiu no primeiro livro de transcrições. Quem sabe um dia eu lance.


Jorge Pescara tocou e/ou gravou com diversos artistas nacionais, como Dom Um Romão, Eumir Deodato, Ithamara Koorax, Luiz Bonfá, Paulo Moura, Victor Biglione, além das bandas Zerø e Dialeto. Também colaborou com artistas internacionais, entre eles os portugueses Fernando Girão e Paco Bandeira, e o guitarrista japonês Mamoru Morishita. Autor de seis livros sobre contrabaixo elétrico, uma vídeo-aula e três álbuns solo, Pescara escreveu mais de 300 artigos para revistas especializadas, como a antiga Cover Baixo, onde manteve uma coluna dedicada ao baixo fretless.

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